A recuperação judicial da Americanas, autorizada na última quinta-feira (19), tem potencial para ser uma das mais complexas e de maior abrangência da história recente do Brasil.
Especialistas consultados pela Folha avaliam que a varejista terá dificuldades em se reestruturar, mais até do que empresas com dívidas maiores e que passaram pelo mesmo processo nos últimos anos, como Odebrecht, Oi e Samarco.
A atual condição financeira da companhia, as peculiaridades do modelo de negócio e a disputa travada com bancos credores são alguns dos elementos que devem prejudicar a capacidade da Americanas de levantar recursos para honrar com suas obrigações.
O caso já se diferencia de outros pela velocidade em que se desdobrou. A crise foi deflagrada no dia 11 de janeiro, quando o CEO Sergio Rial renunciou ao cargo e revelou que a empresa vinha “escondendo” dívidas equivalentes a R$ 20 bilhões em seu balanço.
O anúncio do escândalo contábil deu início a uma batalha entre a varejista e seus maiores credores, que culminou num pedido de recuperação judicial em menos de dez dias.
Com uma dívida total de R$ 43 bilhões, a Americanas ocupa o quarto lugar entre as maiores recuperações judiciais do Brasil, atrás apenas da Odebrecht (R$ 80 bilhões), Oi (R$ 65 bilhões) e Samarco (R$ 55 bilhões). Logo em seguida aparecem a Sete Brasil (R$ 19 bilhões) e a OGX (R$ 12,3 bilhões).
Para Marcela Cavallo, especialista em direito empresarial do escritório Zilveti Advogados, a situação da varejista pode ser uma das mais difíceis entre os grandes processos devido à ausência de ativos para fazer frente à crise.
“A Oi, por exemplo, tinha contratos gigantescos. Além disso, ela vendeu o serviço móvel, que foi basicamente o que tirou ela da UTI”, afirma.
A exemplo da gigante de telecomunicações, Odebrecht também possuía ativos fortes, o que sinalizava para os credores não só capacidade de geração de caixa para honrar com a dívida, mas uma certa confiabilidade de liquidez.
Artur Lopes, sócio da Iwer Capital, empresa de consultoria e gestão, lembra que a Americanas até possui ativos para se desfazer e operações para desmobilizar. Contudo, o impacto seria ínfimo diante do tamanho da dívida.
A varejista é dona da Hortifruti Natural da Terra e da Uni.co, além de ter uma fatia da Vem Conveniência, joint venture com a Vibra (antiga BR Distribuidora).
“O negócio da Americanas é comprar da indústria e revender. Se não tiver capital de giro para comprar, ela está morta”, afirma.
Essa é uma peculiaridade que acrescenta outro desafio para a companhia. Dependente de capital para tocar os negócios, a varejista entrou em disputa com seus principais credores nos dias que antecederam o pedido de recuperação judicial.
A varejista, inclusive, coloca-se como vítima de um “verdadeiro ataque” pelos bancos, que executaram bloqueios de recebíveis e reduziram o caixa da companhia a R$ 250 milhões.
Segundo Cavallo, diante da ausência de ativos para liquidar, a estratégia da Americanas para honrar com suas dívidas deve passar pela obtenção de investimentos. “Mas se as principais instituições financeiras estão em pé de guerra com a varejista, quem vai investir nela?”, questiona.
A advogada diz não ser raro que empresas em recuperação judicial façam negócios e atraiam investimentos. O problema é justamente o tamanho da dívida em questão: R$ 43 bilhões.
“Não são dois investidores que vão resolver esse problema, são vários. Precisa de um conjunto de operações. Então a Americanas vai ficar na mão de terceiros e isso deixa a empresa muito vulnerável.”
A dificuldade em conseguir capital impõe outro problema: a relação com os fornecedores. A confiança de que vão receber o pagamento é fundamental para que eles topem fazer negócio com a companhia, que depende das mercadorias desses parceiros.
Wagner Moraes, fundador da A&S Partners, diz que se a Americanas perder força de compra, os fornecedores vão querer vender à vista, e a varejista não terá caixa para manter o mesmo volume de aquisições.
“Vai ocorrer forte ruptura na recomposição dos estoques. Isso diminui a quantidade de produtos disponível em loja, o que se reflete diretamente em queda de vendas e, logicamente, na necessidade de diminuir a estrutura”, diz.
A menos que haja uma grande injeção de caixa por parte dos investidores e acionistas, ele diz que a Americanas pode começar a ter problemas em manter o volume de vendas —agravando a recuperação judicial.
Artur Lopes, da Iwer Capital, diz que o peso da Americanas na cadeia de produção pode fazer com que o processo tenha uma dimensão e “um custo social maior” do que outros casos recentes.
Ele lembra que muitos fornecedores praticamente dependem da varejista. Por isso, a necessidade de encerrar contratos pode ter um efeito dominó, desafiando a sobrevivência de pequenos e médios negócios.
“Estamos falando de uma população de fornecedores muito grande, alguns deles já frágeis, que não têm uma estrutura de capital para aguentar um baque desses”, diz.
Marcela Cavallo concorda e diz que a recuperação judicial da Americanas tem potencial para ser um dos casos mais graves do Brasil pelo raio de impacto dos problemas.
“O risco que vemos agora, diferentemente do que aconteceu com as outras empresas, é o alcance da crise, que afetaria muitas pessoas direta ou indiretamente”, argumenta.
Esse é um ponto que a própria Americanas explorou no pedido feito à Justiça. A companhia destacou ter 3.600 pontos de venda no país, atender cerca de 50 milhões de consumidores e gerar mais de 100 mil empregos diretos e indiretos.
A magnitude da companhia na economia é mencionada, inclusive, pelo juiz Paulo Assed Stefan na sentença que autorizou a recuperação judicial.
“Trata-se de uma das maiores e mais relevantes recuperações judiciais ajuizadas até o momento no país, não só por conta do seu passivo, mas por toda a repercussão de mercado que a situação de crise das requerentes vem provocando e, por todo o aspecto social envolvido, dado o vultoso número de credores, de empregados diretos e indiretos dependentes da atividade empresarial ora tutelada”, escreveu.
Filipe Denki, diretor da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência do Conselho Federal da OAB e sócio do Lara Martins Advogados, diz que a abrangência da Americanas de fato chama a atenção frente a casos como da Odebrecht, Oi e Samarco.
Outro ponto crucial para ele, ao comparar os processos, é a origem do problema. No caso da varejista, a hipótese de o rombo ter sido causado por uma fraude é crucial e deve ser investigada.
“Ficando confirmado o intuito fraudulento, a chance de convocação de falência é muito grande.”
Esse é um aspecto que distancia a Americanas de outros grandes casos de recuperação judicial.
O processo da Oi, por exemplo, teve origem numa crise de mercado, agravada após a fusão com a Portugal Telecom. A OGX, criada pelo empresário Eike Batista, entrou em crise após se frustrar com a busca de reservas de petróleo no país.
Já o caso da Odebrecht teve relação com denúncias de corrupção da operação Lava Jato, enquanto a Samarco foi responsável pela tragédia ambiental de Mariana (MG).
“Apesar de não ser a maior em volume de passivo, o caso da Americanas pode ficar marcado como a maior fraude do Brasil de empresas que pediram recuperação judicial. Esse é um aspecto negativo que vai ficar mais marcante”, diz Denki.
Fonte: Folha de São Paulo